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Os Assombros de Jayme Griz

Como o escritor pernambucano fez da literatura regionalista uma rara janela

aberta para os aspectos medonhos do imaginário brasileiro


Por Roberto Beltrão


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Parado e extinto,

Dentro da noite,

Jaz o banguê.

 

Carcaça insepulta,

Dele só restam

Mortas lembranças

De uma era defunta.

 

Na noite de trevas

Há surdos rumores

De vozes ausentes

Que enchem a noite

De sustos, temores.

 

O resto é silêncio

Na noite a correr.

Silêncio e treva,

Treva e temores,

Na noite banguê.

 

  Os versos do poema “Noite Banguê” deixam entrever um cenário lúgubre, feito de escombros e lembranças mortas, local afastado das luzes habitado por fantasmas tristes que sussurram ao ouvido dos viventes. Ao se deparar com a composição, qualquer pessoa pode imaginar os restos de um castelo medieval numa montanha escarpada ou ruínas de um cemitério abandonado. Mas só se o leitor não conhecer o significado da palavra “banguê”.  Uma das definições para o termo trazidas pelo Dicionário Houaiss é: “Engenho de açúcar primitivo, movido à força animal”.

 

  O autor do poema estava muito familiarizado com o modo de produção arcaico de cana-de-açúcar no Nordeste do Brasil. Jayme de Barros Griz nasceu no dia 22 de outubro de 1900, no Engenho Liberdade, propriedade rural nas cercanias do município de Palmares, na região Zona da Mata de Pernambuco. Quando menino, foi testemunha de uma mudança econômica que mexeu profundamente com as relações de poder, com a acomodação social e com os costumes daquelas paragens. Os engenhos, que desde os primeiros tempos da colonização portuguesa eram a fonte de riqueza nas regiões não muito distantes do litoral nordestino, foram aos poucos dando lugar às usinas de cana-de-açúcar. As vastas plantações de cana dominando terrenos planos ou irregulares permaneceram as mesmas, mas transformação do insumo agrícola em produto destinado a adoçar bolos e pães, usado para quebrar o amargo do café servido na xícara ou para amenizar o azedume do suco de fruta, deixou de ser artesanal para seguir um regime industrial – feito de máquinas com gigantescas engrenagens e operários embalados pela monotonia do trabalho alienado.

 

  Os engenhos entraram em decadência e, junto com eles, afundou parte da aristocracia canavieira - famílias ainda encasteladas nas “casas grandes” e, de certo modo, ainda apegadas ao patriarcalismo forjado junto com os grilhões do tempo das senzalas. Não foram necessárias tantas décadas para que os engenhos cedessem à falência, impotentes diante da tecnologia mecanizada das competitivas das usinas. Muitas das casas grandes foram sendo abandonadas, tornando-se apenas memórias lúgubres de um longo período de dominação e servilismo quase feudais.

 

  O ocaso dessa elite veio a se refletir no imaginário das comunidades agrícolas daquelas regiões. Do ciclo que se encerrava, restaram memórias quase palpáveis, nostalgia traduzida inconscientemente em aparições espectrais e ocorrências espantosas – corpo etéreo de uma realidade morta. Alguns moradores mais pobres, que perseveraram nos velhos latifúndios, eram como fantasmas vivos, ligados a um cotidiano sem perspectivas, como vítimas de uma maldição.

  Conta-nos Gilberto Freyre no prefácio da primeira edição de “Casa Grande & Senzala”:

 

Os mal-assombrados das casas-grandes se manifestam por visagens e ruídos que são quase os mesmos por todo o Brasil. Pouco antes de desaparecer, estupidamente dinamitada, a casa-grande de (engenho) Megaípe, tive ocasião de recolher, entre os moradores dos arredores histórias de assombração ao velho solar do século XVII. Eram barulhos de louça que se ouviam na sala de jantar; risos alegres e passos de dança na sala de visita; tilintar de espadas; ruge-ruge de sedas de mulher; luzes que acendiam e se apagavam  de  repente por toda a casa; gemidos; rumor de correntes se arrastando; choro de menino; fantasma do tipo cresce-mingua.  (P. lxi) 

  É importante observar que a própria cultura surgida em torno das casas grandes se alimentava de uma relação de intimidade com o “Além”, com o chamado “Outro Mundo”. Isso porque os mortos não se distanciavam da dia-a-dia dos viventes, fosse herdeiros ou vassalos. Era muito comum construir capelas contíguas às residências sede dos engenhos. E essas pequenas igrejas, dedicadas ao santo de devoção da família rica, não raro viravam a moradia definitiva dos membros do clã. Os corpos eram acomodados no entorno dos templos. Às vezes os restos mortais eram colocados em ossuários nas paredes das capelas. Esse costume, que hoje nos parece absurdo, vem de crenças do catolicismo medieval: enterrar os defuntos nas proximidades das igrejas, ou mesmo dentro delas, era a garantia de que a alma do defunto não seria consumida pela danação infernal, permaneceria sob a proteção dos santos.

  E os finados não ficavam quietos e silenciosos, como se poderia esperar. Pelo contrário: eles se moviam entre os viventes, dialogavam com os familiares e empregados. Podia ser para pedir rezas e missas em sua intenção, para dar conselhos, para prever acontecimentos trágicos ou para indicar a localização de tesouros ocultos – as chamadas “botijas”, dinheirama escondia em socavões, por entre as tábuas do chão, ou disfarçadas no reboco da paredes grossas.

  Em “Assombrações e coisas do Além”, Fátima Quintas detalha:

“Santos, mortos e vivos, esta a escala hierárquica. Uma sociedade quase sobrenatural a dos nossos antepassados. (...) E esses mortos era enterrados pertinho para facilitar a circulação entre vivos e mortos (...)  Não é de se estranhar que no epicentro dessa malha sobrenatural os fantasmas fossem invocados a toda hora: surgiam como miragens, por vezes benfazeja, por vezes alarmantes.”

 

Nota de rodapé: Dados históricos comprovam que a prática de fazer das igrejas mausoléus para mortos de famílias de posses perseverou até meados do século XIX e só aos poucos foi vencida pelas crenças racionalistas de um mundo em processo de industrialização, que passava a ser regido pelas determinações da Ciência. Percebeu-se era um perigo para a saúde pública manter cadáveres próximos dos vivos. O conceito de que estar em uma igreja era garantia após a morte, vai cedeu lugar ao higienismo, pois se percebeu o risco da contaminação por gases e miasmas que vêm da matéria em putrefação.  Houve, claro, bastante reação ao novo conceito. A ideia de criar uma necrópole pública no Recife já era discutida pelos governantes e pelo clero pernambucano em 1801. Mas, de acordo com compêndio Anais Pernambucanos, volumosa obra do historiador F. A. Pereira da Costa, só em 1817 o governador Luís do Rêgo Barreto solicitou ao bispado que ordenassem aos párocos e autoridades eclesiásticas um levantamento sobre um “sítio separado da cidade, seco e ventilado, para se levantar um cemitério separado da cidade”. Só em 1851 começou a funcionar de fato o Cemitério de Santo Amaro, o mais tradicional da capital pernambucana.

 

 

Livro tem uma nova edição publicada pela UFRPE
Livro tem uma nova edição publicada pela UFRPE

 

  Essa vivência de intimidade entre o mundo palpável e o sobrenatural impregnou quase todo o trabalho do contador de histórias que foi Jayme Griz - folclorista, contista, poeta. O já mencionado poema “Noite Banguê” foi publicado no livro “Acauã”, de 1959. E os títulos de outros poemas da publicação demonstram esse apego de Griz ao lúgubre e ao fantasmagórico: “Assombração”, “Noturno”, “Abusão”, “Feitiço”, “Rua das Almas”. Neste último, os versos tentam capturar um sentimento de nostalgia espectral em cenário decadente:

 





(...)

Nas suas velhas calçadas

Hoje só andam almas tresmalhadas

Suas velhas casas ocas e desertas,

De portas e janelas sempre fechadas

Lembram nas sombras evanescentes da noite,

Criatura mortas, de pálpebras cerradas... (...)

 

  Antes de “Acauã”, o autor produziu obras também motivadas por uma sincera admiração pela cultura popular nordestina (em particular, da Zona da Mata Pernambucana),  por um desejo de preservar personagens, modos e crenças desse imaginário. Volumes como “Rio Uma” (de poemas), e os estudos “Palmares, seu povo, suas tradições” e “Gentes, coisas e cantos do Nordeste”. Em 1956 veio o primeiro trabalho totalmente dedicado ao fantástico: o livro de contos “O Lobisomem da Porteira Velha”, publicação do Arquivo Público Estadual, com ilustrações em preto e branco do artista plástico Manoel Bandeira (pintor nascido na cidade de Escada, também afeito às coisas do Pernambuco canavieiro, quase homônimo do ilustre poeta modernista). No prefácio de “O Lobisomem...” Gilberto Freyre, expõe seu interesse pelo tema das fantasmagorias de sabor regionalista que o levaram a publicar a obra “Assombrações do Recife Velho” naquela mesma década de 50 do século passado:


“E conforme já sugeri, o sobrenatural entre nós – o mesmo talvez se observe em outros países – tem sua ecologia; há assombrações que são próprias das cidades – do Recife, por exemplo – e outras que parecem limitar-se às matas, ao descampados e em Pernambuco ao engenhos de açúcar, nos quais o ponto preferidos para as aparições mais temidas pela gente do povo vem sendo, desde de dias remotos, as porteiras quase feudais dos velhos domínios.” (pg 13)


  E Freyre reconhece em Griz um talento de narrador ficcional capaz de distinto do folclorista apenas preocupado com o registro das lendas:

 

“Quando digo que se trata de um livro surpreendente, não exagero: o sr. Jayme Griz alcança nas páginas de sua coleção de histórias de assombrações de engenho um vigor dramático na narrativa que marca uma nova fase no desenvolvimento do seu talento de escritor e da sua técnica literária. Apresenta-se desembaraçado da má retórica que também atinge entre nós os escritores especializados em temas folclóricos, fazendo que alguns deles percam todo o poder literário de narração ou estilização de histórias colhidas da boca do povo.” (pg 14)


  Por fim, o sociólogo vislumbra a singularidade do texto e da temática de Griz em meio a um panorama literário brasileiro dominado pelo cânone do realismo. E faz isso ao lembrar um dos mais expressivos autores do Regionalismo Modernista:


Já existe sobre os engenhos do Nordeste obra monumental: a do escritor paraibano de formação recifense José Lins do Rêgo. Mas a esse monumento de literatura regional falta a presença do sobrenatural em suas formas ou expressões mais caracteristicamente regionais. Faltou-lhe a constância ou recorrência de lobisomens, almas penadas e caiporas de engenho. É uma catedral quase sem quimeras, alevantada (sic) pelo grande escritor paraibano, talvez afastado do quimérico e do fantástico pela sua preocupação de realismo absoluto. (pgs 14e 15)

  A opção pelo insólito e o lendário pode ter sido intuitiva para Griz: nos seus escritos nada indica que ele queria fazer uma contraposição consciente ao realismo. Mas nota-se no elogio de Freyre a defesa prévia de uma obra que não tenderia a receber boa acolhida por parte da intelectualidade - isso em uma época que o fantástico era frequentemente subestimado pelos críticos e praticantes da literatura em nosso país, focada em uma propensão majoritária para a literatura documental, voltada para a consolidação de uma concepção substancialista da nacionalidade. No texto de apresentação da antologia “O Fantástico Brasileiro – contos esquecidos”, Maria Cristina Batalha enfatiza:


 “(...) a presença do gênero fantástico, que foi subterrânea, pautou-se por uma produção cultural de resistência à estética realista, tomada como canônica, durante largo período da nossa vida literária”.


  De fato, em “O Lobisomem da Porteira Velha”, o escritor palmarense vai de encontro aos estereótipos convencionais relacionados às lendas e mitos brasileiros descritos em nossa literatura até então. Nada infantilizar os duendes, tal como fez Monteiro Lobato com o amigável saci do Sítio do Pica Pau Amarelo. Em Griz, espectros e monstros se apresentam com toda sua força medonha e seus aspectos escatológicos, aproximando a obra de recorte regional do horror gótico clássico. Existe nos contos do pernambucano a clara intensão de transmitir ao leitor o pavor vivenciado pelos personagens. São pessoas perplexas diante de ocorrências insólitas, em uma vivência perturbadora de rompimento da realidade estabelecida. E o locus horrendus é formado pela casa velha do engenho e as matas lúgubres em seu derredor. No conto que dá nome ao livro, o autor usa a voz do personagem Mestre Chico para descrever a origem do terrível licantropo:


“O Engenho Cafundó ainda hoje é conhecido em todos aqueles velhos sítios que o cercam como mundo de abusão, terra de lobisomem, toca de malassombro.

         Cafundó mete medo à gente. Perdido em meio de espessa e vasta mataria, encravada entre serras onde o vento zune noite e dia, sombria e triste, aquilo só se parece mesmo com toca de malassombro.


         As histórias que se contam desse engenho são de arrepiar. Dizem que os antigos que, no tempo da escravidão, negro ali sofreu mais que Nosso Senhor na cruz! Por qualquer asneira: negro no couro, negro esmagado na moenda, negro queimado na fornalha, negro cozinhado no mel, negro enterrado vivo pelas estradas.

         Um horror ouvir contar!


         Um dia, contam, o engenho foi excomungado por um padre que por lá passando, clamou, revoltado, contra as atrocidades impostas aos pobres negros, pelo seu cruel senhor. Desse padre, daí por diante, ninguém mais ouviu falar... E desde esse tempo, escureceu em Cafundó. As almas dos negros trucidados começam a correr o fado, penando, gemendo, chorando, nos ferros e no chicote do feitor, acima e abaixo, como no tempo dos vivos.


         Dizem que depois da excomunhão do engenho e do desaparecimento do padre, o senhor dos negros deu para trás , empobreceu, amofinou, adoeceu e, lá um dia, depois de muito padecer, amarelo, inchado, cabeludo como um bicho, rinchando e dando popas como se fosse um cavalo, ganhou o mato.   Desapareceu. Virou lobisomem.”

 

  Em 1969 veio a segunda reunião de contos de Jayme Griz. No livro “O Cara de Fogo”, foram publicadas dez narrativas, das quais nove retomam o tema do horror sobrenatural em meio às brenhas, cidade pequenas e engenhos abandonados. No prefácio da obra, o sociólogo Pessoa de Moraes ressalta o gosto pelo fantástico explicitado pela obra de Griz:


“(...) os contos do livro procuram trazer essa outra visão do Nordeste: a visão mística, pejada do fantástico, fugindo do puro realismo convencional como alguns de seus personagens desembestados, o cabelo em pé, os olhos esbugalhados, quase fora da órbita, a respiração esbaforida e sôfrega, os pés ligeiros prontos para a correria desabalada, escapulindo rápido no oco do mundo, como ele próprio diria.”

 

  De fato são histórias que confrontam o leitor com o pavor provocado pelo insólito. No conto de dá título ao livro, por exemplo, fala do fantasma que assombra uma curva de uma estrada de ferro. Seria o espírito de um maquinista vítima de um terrível acidente: quando a locomotiva descarrilou, ele foi atido de cabeça na fornalha. E encontrar o espectro era testemunhar os efeitos daquela morte trágica:


“Ao aproximar-se do barraqueiro, a sombra diluiu-se na escuridão e uma enorme e deformada cabeça humana apresentou-se diante dele, dentro de uma grande tocha de fogo vivo, na qual um rosto humano se consumia em estertores indescritíveis. A medonha cabeça flutuava num mar de chamas. Os olhos esbugalhados e em sangue se projetavam para fora das órbitas. Os dentes em brasa, a língua em chamas, os cabelos eriçados se retorciam no ar como fios de fogo, enquanto as mãos do fantasma, também em chamas, tentavam, em vão, apagar aquela enorme e apavorante fogueira que flutuava naquele mundo de treva que as chamas fantasmais estranhamente não iluminavam.


Naquele terrível transe, só a tétrica cabeça era visível, envolta em chamas. O resto era densa treva!”

 

 

 
 
 

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